segunda-feira, 3 de outubro de 2011
Dona Hilda, padre Cifrão e o negócio celestial
Marcelo Xavier
Como faz todos os dias, Dona Hilda acordou cedo, tomou seu café solitário e foi pra Igreja da Boa Viagem rezar. Gostava de ser das primeiras a falar com Deus. "Ah! é melhor. Ele está mais disposto, de cabeça fria. Ainda não se encheu das queixas e lamúrias diárias." A beata dizia isto e seguia, com terço, missal e véu - instrumentos indispensáveis para a prática da sua profissão de fé - em direção à porta principal da matriz. Logo que transpunha o portal de inspiração gótica, vislumbrava os vários tipos de carros dispostos em sequência por toda a nave da igreja, todos com a frente voltada para o altar-mor. Dona Hilda, com muita desenvoltura, abria a porta de um dos veículos, se acomodava em um dos bancos estofados, fechava a porta, o mais discretamente possível iniciava sua conversa particular com o Senhor. De vez em quando o silêncio do amplo espaço do templo era quebrado pelo som de portas de outros carros sendo abertas ou fechadas por fiéis que chegavam ou saíam. Desde que Padre Cifrão liberou o espaço interno da igreja para os carros, atendendo à crescente demanda por estacionamento na região, mandando os arcaicos e desconfortáveis bancos de madeira para um topa-tudo da avenida Tereza Cristina, ficou muito mais fácil ser cristão. Devidamente instalado, o fiel pode, se quiser, ligar o rádio do carro enquanto espera o início da missa; pode ainda, antes de sair, usar o espelho retrovisor para dar um grau no penteado, retocar a maquiagem e, até arriscar uma mirada investigativa nos ocupantes do banco de trás. Diz o povo que daqueles bancos já saíram vários casamentos. Como não se cansa de correr atrás de novidades, Padre Cifrão - responsável pela prática religiosa do bando de almas daquela importante paróquia - liberou as buzinas nos momentos da celebração em que,antes, os fiéis, embevecidos, cantavam, oravam em voz alta ou aplaudiam eufóricos a manifestação da fé em seus espíritos.
Outro dia, feliz da vida, Padre Cifrão, enquanto celebrava a missa dominical e a boa renda de seu negócio celestial, varrendo com olhar de rapina a igreja lotada de veículos, de todas as marcas e preços, mirou com o canto do olho o local onde está o altar- uma pesada mesa de concreto revestida de mármore - e teve a costumeira inspiração divina de sua próxima investida: tirar dali aquele artefato obsoleto e estacionar, posicionado de frente para a frota de fiéis, um daqueles carros importados que ficam expostos nas vitrines da Raja Gabaglia, conversível, é claro, para que ele possa se levantar e abençoar seu rebanho, com os faróis acesos e o pisca--alerta ligado, no momento de lançar as palavras de despedida a suas ovelhas: "Ide em paz! O Senhor vos acompanhe."
A caminho de casa, Dona Hilda, cheia de graça, dá a passadinha costumeira na banca de revistas e, se benze três vezes ao ler na primeira página do Estado de Minas: "Prefeitura vai acabar com os estacionamentos nas igrejas de BH". Atônita, a santa mulher tenta uma conexão de emergência com os céus e lança sua súplica desesperada ao Todo Poderoso: " Não permita, Senhor, que os espíritos atrasados continuem ganhando terreno." Benze-se mais uma vez pra finalizar a ligação e se manda pela rua Goiás. Ela mora a dois quarteirões dali.
Marcelo Xavier é escritor e artista plástico
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Muito legal Marcelo, adorei seu lado cronista. Mais um dom do qual eu não sabia.
ResponderExcluirabraços
lena