Vale a pena ler de novo
Entrevista realizada em 2013 com a professora da Unicamp, Walquiria Leão Rego, que explica porque o Programa provoca tanto incômodo em alguns setores.“ Esse preconceito
contra Bolsa Família é fruto da cultura do desprezo”, diz pesquisadora.
Com Isadora Peron
O Programa Bolsa Família
fez 10 anos no domingo, dia 20. Quando foi lançado, no primeiro mandato de Luiz
Inácio Lula da Silva, atendia 3,6 milhões de famílias, com cerca de R$ 74
mensais, em média. Hoje se estende a 13,8 milhões de famílias e o
valor médio do benefício é de R$ 152. No conjunto, beneficia cerca de 50
milhões de brasileiros e é considerado barato por especialistas: custa menos de
0,5% do PIB.
Para avaliar os impactos
desse programa a socióloga Walquiria Leão Rego e o filósofo italiano Alessandro
Pinzani realizaram um exaustivo trabalho de pesquisa, que se estendeu de 2006 a
2011. Ouviram mais de 150 mulheres beneficiadas pelo programa, localizadas em
lugares remotos e frequentemente esquecidos, como o Vale do Jequitinhonha, no
interior de Minas.
O resultado da pesquisa
está no livro Vozes do Bolsa Família, lançado há pouco.
Segundo as conclusões de seus autores, o incômodo e as manifestações contrárias
que o programa desperta em alguns setores não têm razões objetivas. Seria
resultado do preconceito e de uma cultura de desprezo pelos mais pobres.
Os pesquisadores também
rebatem a ideia de que o benefício acomoda as pessoas. “O ser humano é
desejante. Eles querem mais da vida como qualquer pessoa”, diz Walquiria, que é
professora de Teoria da Cidadania na Unicamp.
Na entrevista abaixo –
concedida à repórter Isadora Peron – ela fala desta e de outras conclusões do
trabalho.
Como surgiu a ideia da
pesquisa?
Quando vimos a dimensão
que o programa estava tomando, atendendo milhões de famílias, percebemos que
teria impacto na sociedade. Nosso objetivo foi avaliar esse impacto. Uma vez
que o programa determina que a titularidade do benefício cabe às mulheres, era
preciso conhecê-las. Então resolvemos ouvir mulheres muito pobres, que
continuam muito pobres, em regiões tradicionalmente desassistidas pelo Estado,
como o Vale do Jequitinhonha, o interior do Maranhão, do Piauí…
E quais foram os impactos
que perceberam?
Toda a sociologia do
dinheiro mostra que sempre houve muita resistência, inclusive das associações
de caridade, em dar dinheiro aos pobres. É mais ou menos aquele discurso: “Eles
não sabem gastar, vão comprar bobagem.” Então é melhor que nós, os
esclarecidos, façamos uma cesta básica, onde vamos colocar a quantidade certa
de proteínas, de carboidratos… Essa resistência em dar dinheiro ao pobres
acontecia porque as autoridades intuíam que o dinheiro proporcionaria uma
experiência de maior liberdade pessoal. Nós pudemos constatar na prática, a
partir das falas das mulheres. Uma ou duas delas até usaram a palavra
liberdade. “Eu acho que o Bolsa Família me deu mais liberdade”, disseram. E
isso é tão óbvio. Quando você dá uma cesta básica, ou um vale, como gostavam de
fazer as instituições de caridade do século 19, você está determinando o que as
pessoas vão comer. Não dá chance de pessoas experimentarem coisas. Nenhuma
autonomia.
Está dizendo que essas
pessoas ganharam liberdade?
Estamos tratando de
pessoas muito pobres, muito destituídas, secularmente abandonadas pelo Estado.
Quando falamos em mais autonomia, liberdade, independência, estamos nos
referindo à situação anterior delas, que era de passar fome. O que significa
dizer de uma pessoa que está na linha extrema de pobreza e que continua pobre
ganhou mais liberdade? Significa que ganhou espaços maiores de liberdade ao
receber o benefício em dinheiro. É muito forte dizer que ganhou independência
financeira. Independência financeira temos nós – e olhe lá.
O que essa liberdade
significou na prática, no cotidiano das pessoas?
Proporcionou a
possibilidade de escolher. Essa gente não conhecia essa experiência. Escolher é
um dos fundamentos de qualquer sociedade democrática. Que escolhas elas fazem?
Elas descobriram, por exemplo, que podem substituir arroz por macarrão. No
Nordeste, em 2006 e 2007, estava na moda o macarrão de pacote. Antes, havia
macarrão vendido avulso. O empacotamento dava um outro caráter para o macarrão.
Mais valor. Elas puderam experimentar outros sabores, descobriram a salsicha, o
iogurte. E aprenderam a fazer cálculos. Uma delas me disse: “Ixe, no começo,
gastei tudo na primeira semana”. Depois aprendeu que não podia gastar tudo de
uma vez.
A que atribui a
resistência de determinados setores da sociedade ao pagamento do benefício?
O Bolsa Família é um
programa barato, mas como incomoda a classe média (ela
ri). Esse incômodo vem do preconceito.
Fala-se que acomoda os
pobres.
Como acomoda? O ser
humano é desejante. Eles querem mais da vida, como qualquer pessoa. Quem diz
isso falsifica a história. Não há acomodação alguma. Os maridos dessas mulheres
normalmente estavam desempregados. Ao perguntar a um deles quando tinha sido a
última vez que tinha trabalhado, ele respondeu: “Faz uns dois meses, eu colhi
feijão”. Perguntei quanto ele ganhava colhendo feijão. Disse que dependia, que
às vezes ganhava 20, 15, 10 reais. Fizemos as contas e vimos que ganhava menos
num mês do que o Bolsa Família pagava. Por que ele tem que se sujeitar a isso,
praticamente à semiescravidão? Esses estereótipos tem que ser desfeitos no
Brasil, para que se tenha uma sociedade mais solidária, mais democrática. É
preciso desfazer essa imensa cultura do desprezo.
No livro a senhora diz que
essas mulheres veem o benefício como um favor do governo.
Sim, de 70% a 80% ainda
veem o Bolsa Família como um favor. Encontramos poucas mulheres que achavam que
é um direito. Isso se explica porque temos uma jovem democracia. A cultura dos
direitos chegou muito tarde ao Brasil. Imagino que daqui para a frente a ideia
de que elas têm direito vai ser mais reforçada. Para isso precisamos, porém, de
políticas públicas específicas. Seriam um segundo, um terceiro passo…
Os desafios a partir de agora são muito grandes.
Qual é a sua avaliação
geral do programa?
Acho que o Bolsa Família
foi uma das coisas mais importantes que aconteceram no Brasil nos últimos anos.
Tornou visíveis cerca de 50 milhões de pessoas, tornou-os mais cidadãos. Essa
talvez seja a maior conquista.
Entre as mulheres que
ouviu, alguma foi mais marcante para a senhora?
Uma das mais marcantes
foi uma jovem no sertão do Piauí. Ela me disse: “Essa foi a primeira vez que a
minha pessoa foi enxergada”. Tinha uma outra, do Vale do Jequitinhonha, que
morava num casebre, sozinha com três filhos. Quando começou a contar a história
dela, perguntei qual era a sua idade, porque parecia que já tinha vivido muita
coisa. Ela respondeu: “29 anos”. E eu: “Mas só 29?” Ela: “Mas, dona, a minha
vida é comprida, muito comprida.” Percebi que falar que “a minha vida é muito
comprida” é quase sinônimo de “é muito sofrida”
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