Os adeuses de Sérgio Miranda
Encontramo-nos de forma mais visível e permanente quando nos elegemos vereadores em 1988. Foi uma legislatura que marcou época. Fizemos a Lei Orgânica de Belo Horizonte. Aprovamos importantes projetos de lei fundados em valores éticos e voltados para o bem da cidade.
Sérgio Miranda tornou-se uma liderança natural e um atento interlocutor de seus colegas na busca de encaminhamentos para os graves problemas da população belorizontina, especialmente os mais pobres.
Militante político desde a adolescência – contou-me que se vinculara ao PC do B aos 14 anos – com sólida formação e muitas leituras, Sérgio acumulou uma admirável cultura humanística que transitava com leveza da literatura à história, das ciências sociais e matemáticas à filosofia. Tinha uma relação especial com a poesia. Em tardes e noites mais descontraídas declamava de cor e com vervetextos clássicos do melhor da nossaprodução poética. Lembro-me dele, na tribuna da Câmara, profligando com Tiradentes os que fazem do poder instrumento de opressão, repassando indignado, as páginas de Cecília Meireles no Romanceiro da Inconfidência.
Revejo-o, entrando pelo meu gabinete de vereador para presentear-me com O Livro de Carlos (Carlos Pena Filho, Poesia e Vida). Buscou a página 69 e leu o belíssimo soneto “A Solidão e sua Porta”. Disse-me que de imediato me associara a ele, que ele me traduzia muito bem. Generosidade do Sérgio! (Transcrevo o soneto no final desse texto).
A partir de então estendemo-nos, plenas, abertas as mãos da amizade.Sempre que nos encontrávamos a conversa fluía solta na grande prosa do mundo. Certa vez nos encontramos numa livraria ao redor da obra monumental de Robert Musil – O Homem sem Qualidades.
O então prefeito Célio de Castro nos convidava com freqüência para conversas sobre política e seus entornos. Nós três tínhamos em comum, além dos laços da amizade fraterna, essa compreensão da política no contexto mais alargado da vida, dos sentimentos e das inquietações humanas.
Encontramo-nos novamente para uma convivência mais cotidiana na Câmara dos Deputados. Estivemos juntos na Comissão de Constituição e Justiça. Foi em 2003. Já no ano seguinte, convidado pelo Presidente Lula, assumi o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Algumas vezes Sérgio esteve lá para boas e instigantes conversas voltadas para a maior amplitude e eficácia das políticas públicas sociais. Entre muitas outras coisas Sérgio era um especialista em questões orçamentárias.
Pelo que vivi com ele, 2003 foi o início do seu tempo de maior sofrimento. Sergio foi sempre um homem com elevada dose de inquietação e angústia. Sofria com os descaminhos do Brasil e da humanidade – as injustiças e desigualdades, a estupidez, a indiferença, a mediocridade tocavam-lhe profundamente a fina sensibilidade e a inteligência perspicaz e acolhedora.
Externou-me a sua total discordância com a proposta de reforma da Previdência Social enviada ao Congresso Nacional no início do Governo Lula. Tinha também restrições ao projeto de reforma tributária e à política econômico-financeira. Entendia as suas razões embora nem sempre concordasse. A nossa conversa era boa, dialogante, respeitosa.
Disse-me um dia que chegara ao limite: não podia transigir com as suas convicções mais profundas. Afastou-se da base parlamentar de apoio ao governo; desligou-se do seu velho e querido PC do B. Parafraseando os versos da belíssima canção que Paulinho da Viola revelou ao mundo, fez suas velas ao mar e disse adeus sem chorar. Sem chorar?… Seguramente não, ainda que tenha sido lágrimas contidas, internas, aquelas que a gente “chora, mas faz que não chora”. Mas disse adeus!
Creio que desde então a dimensão indagadora de Sérgio Miranda tornou-se, talvez, mais forte, mas, seguramente, mais sofrida. Adeus é palavra longa!
Não se reelegeu deputado federal em 2006. Uma perda enorme para o Brasil. Sérgio era um parlamentar notável, respeitado por todos, inclusive, pela direita menos arcaica. Deputado competente, íntegro, estudioso.
Disputou a Prefeitura de Belo Horizonte em 2008. Nessa época tivemos uma longa conversa. Ouvi então dele uma elaborada reflexão que nunca esqueci sobre o rebaixamento dos sonhos, dos desejos nas pessoas. O efeito mais perverso do neoliberalismo e seus outros ismos: individualismo, consumismo, oportunismo, cinismo.
Tentou de novo a Câmara dos Deputados em 2010. Faltou-lhe apoio, os acertos político-partidários são pragmáticos e quase sempre excluem as manifestações mais ousadas e idealistas.
Sérgio Miranda disse adeus à Câmara e às disputas eleitorais.
A última vez que o vi foi num encontro unilateral. Ele caminhava solitário pelas calçadas estreitas e movimentadas de Belo Horizonte. Ele não me viu. Fiquei a vislumbrá-lo dentro de um carro, acompanhando, reflexivo e amoroso, os seus passos. Pensei naquele momento sobre os desacertos da vida: tantas mediocridades, tantos oportunistas, que me perdoem a palavra, respaldado na franqueza do grande alferes na obra de Cecília, tantos putos e safados ganhando eleições, cargos, “podres poderes” e Sérgio Miranda, servidor público no sentido maior da palavra, homem vocacionado para as grandes causas, ser do bem, humano, justo; sofredor solidário dos desatinos de sua gente e de sua espécie, mas sempre transfigurado pela compaixão, e impossibilitado de realizar sua esplêndida vocação política. Fiquei vendo-o, acompanhando perplexo, aquele imenso Sérgio Miranda, sobrecarregado de bondade e virtudes cívicas, caminhando anônimo pelas ruas da cidade que ele escolheu e tão bem serviu. Senti naquele momento como sinto agora, a nossa incrível capacidade de esperdiçar convivências dignas, vocações e talentos de cidadania, de patriotismo, de compostura humana. Como Sérgio Miranda!
Não fomos capazes de bem compreendê-lo. Que os seus adeuses e anúncios se estendam às futuras gerações. Que elas possam melhor compreendê-lo!
A solidão e sua Porta
Quando mais nada resistir que valha
a pena de viver e a dor de amar
e quando nada mais interessar
(nem o torpor do sono que se espalha),
Quando, pelo desuso da navalha
a barba livremente caminhar
e até Deus em silêncio se afastar
deixando-te sozinho na batalha
a arquitetar na sombra a despedida
do mundo que te foi contraditório,
lembra-te que afinal te resta a vida
com tudo que é insolvente e provisório
e de que ainda tens uma saída:
entrar no acaso e amar o transitório.
Nenhum comentário:
Postar um comentário